“No mínimo prevaricação”: especialistas avaliam possíveis crimes de Anderson Torres

Especialistas ouvidos pelo Globo enumeraram diferentes ilegalidades em potencial protagonizadas por Anderson Torres em virtude da minuta de teor golpista encontrada na residência do ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Os juristas, porém, são unânimes em um ponto: a própria versão apresentada por Torres — ele alegou que o documento estava em uma “pilha para descarte” — reforça, no mínimo, a hipótese de crime de prevaricação, que ocorre quando um agente público deixa de cumprir deliberadamente com o seu dever.


O esboço de decreto previa uma espécie de intervenção do governo federal no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o que abriria caminho para alterar o resultado do pleito do ano passado. O documento que determinava a implementação do “estado de Defesa” na Corte foi encontrado na última quarta-feira (11), quando a Polícia Federal cumpriu um mandado de busca e apreensão na casa de Torres por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).


— Imaginemos o seguinte cenário: o Anderson Torres, enquanto ministro, é procurado por terceiros que pretendem colocar em curso um golpe de estado e recebe esse documento. Se ele tem ciência desse plano e nada faz, temos claramente um crime de prevaricação — analisa o advogado criminalista e professor de Direito Penal Taiguara Libano Soares e Souza.




— Pelas informações que temos, ele, no mínimo, prevaricou. Na condição de ministro da Justiça, ele deveria pelo menos ter mandado investigar e tomado as providências cabíveis. Como você fica com esse documento no armário de casa? Eu acho, inclusive, que ele confessou a prevaricação ao admitir que mantinha esses papéis ali, além de descartar qualquer tese sobre ter sido algo plantado — complementa o advogado Daniel Sarmento, professor titular de Direito Constitucional da UERJ e ex-procurador da República.


A linha de defesa de Torres, ao pregar a intenção de se desfazer da minuta agora apreendida, também abriu brecha para outra interpretação potencialmente desfavorável para o ex-ministro. Na avaliação de Taiguara Libano, a prática descrita pelo investigado poderia indicar um plano de destruição de provas.


— Se você recebe essa papelada, e ela é uma prova documental da tentativa de crime contra o Estado Democrático de Direito, descartá-la significaria eliminar o corpo de delito do crime. É algo grave, que poderia concretizar até mesmo o crime de fraude processual — diz o professor.


Já Breno Melaragno Costa, advogado criminalista e professor de Direito Penal da PUC-Rio, corrobora a tese de prevaricação levantada pelos colegas, chamada por ele de “melhor das hipóteses” para Torres, mas vai além:


— A gente precisa entender que respondem pelos crimes aqueles que executam e auxiliam, mas também aqueles que têm o chamado domínio do fato. Como (o documento) foi encontrado na casa dele, com admissão de que tinha ciência da existência, o ex-ministro já fica comprometido nesse sentido, independentemente de outras questões — afirma Melaragno, que completa: — A minuta era a elaboração de uma série de medidas concretas para fraudar o processo eleitoral. Argumentar, agora, que “não tem nada a ver” com isso me parece uma defesa frágil, sem amparo legal.


Golpe de estado

Os juristas consultados pelo Globo concordam que o conteúdo em si do documento tem claro caráter golpista. Os envolvidos na elaboração da minuta, portanto, podem ter cometido os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de estado. Os especialistas ponderam, no entanto, que é preciso aguardar que as investigações avancem para considerar uma eventual responsabilização de Anderson Torres neste sentido.


— Quem se envolveu na elaboração direta daquele plano cometeu esses crimes, mesmo que não tenha sido colocado em prática. Mas a gente ainda não sabe qual foi a participação concreta do ex-ministro. Se ele tomou partido no planejamento, por exemplo, é claro que se trata de algo muito mais sério — pontua Daniel Sarmento.


Para apurar o envolvimento de Torres, o professor Taiguara Libano Soares e Souza defende o emprego de medidas cautelares como a prisão preventiva do ex-ministro, decretada por Alexandre de Moraes.


— Eu tenho uma visão penal minimalista e acho que prisão é em último caso, mas, nesse contexto, eu concordo. E é preciso quebrar também o sigilo telefônico e telemático, para que se possa verificar todo o entorno — explica o criminalista, frisando, contudo, que não é possível, no Direito Penal, punir os chamados “atos preparatórios”:


— Existem etapas para praticar um crime. Se você pensa em roubar alguém, não é um crime. Se você compra uma arma para isso e não faz, também não é crime. Vale o mesmo para cogitar o ato e não por em prática. Agora, se há uma ação concreta no sentido de fazer, a história muda. A dúvida é se houve uma interrupção ainda nesses atos preparatórios ou já nos atos executórios. Porque se você efetivamente tenta colocar um golpe de estado em curso e falha, já entra numa modalidade tentada do crime, que é passível de punição.

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